Uma semana depois...
Ainda parece um sonho. Não parei de me emocionar. Na sexta, meus olhos encheram de lágrimas ao ler um texto da Joana sobre a fundação do PT em Niterói (http://joanar.blogspot.com). Sábado, chorei de novo. Fiquei com inveja dela e de tantos outros colegas que me contam estórias de pais que colocaram os filhos nos ombros e os levaram para passeatas, que choraram com a derrota de Lula em 1989. Lá em casa, não se falava em política. Quer dizer, só se fosse para criticar pessoas que eu mais tarde passaria a admirar.
Eu tive que correr atrás da história sozinha. No primeiro colégio, era tempo de estudar Educação moral e cívica. No segundo, também conservador, não me falaram nada de ditadura, de luta armada e de torturas. Nem as da época da polícia política de Getúlio Vargas e Filinto Muller. Meus pais, na década de 70, queriam era comemorar a construção da casa própria e a compra do carro do ano, entupir os cômodos com televisões, ouvir Roberto Carlos e cuidar dos dois filhotes, nascidos em 1970 e 1975. Livros lá em casa, só os das estórias dos Três porquinhos e da Cinderela.
Minha consciência política só foi despertada por um namorado que insistia para que eu visse Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber. "Como você nunca ouviu falar desse filme?". Eu demorei a vê-lo, mas um dia numa livraria me deparei com um livro de capa branca e vermelha e a foto de Glauber. Era uma biografia do cineasta cujo Deus e o diabo eu não deveria deixar de conhecer, segundo Armando. Ele comprou o livro, me deu de presente e não sabia que, a partir dali, minha vida (e alma) mudaria radicalmente. O ano era 1997.
Ainda não tinha começado a estudar jornalismo, mas já desenvolvera um amor desenfreado pelos livros. Quando terminei de ler a biografia de Glauber, marquei na bibliografia todos os livros sobre política e história dos anos 60 que eu leria a partir de então. Uns foram me levando a outros. Comecei pelo 1968, do Zuenir Ventura, passei por Combate nas trevas, de Jacob Gorender (cujo irmão foi crítico de cinema no mesmo jornal em que Glauber trabalhou na Bahia do fim dos anos 50), Guerra de guerrilhas no Brasil, os três volumes das memórias militares do golpe, ditadura e abertura, Mulheres que foram à luta armada, Brasil: nunca mais, e assim por diante. Além dos livros de história (os da oficial e os que contava particularmente a da esquerda no Brasil), comecei a devorar biografias: Olga Benário, Carlos Marighella, Oduvaldo Viana Filho, Gracialiano Ramos, Henfil.
Todas as leituras me levaram a um encontro com a pessoa que seria meu mestre na faculdade de Comunicação, Dênis de Moraes. Suas aulas eram o espaço para se discutir política e cultura, jornalismo e literatura. Temas caros a mim e aos colegas com quem finalmente encontrei infinitas afinidades (diferentemente dos amigos da Economia, primeira faculdade).
Com tantas leituras, deslumbrei-me no início, amadureci depois. Os erros da esquerda (principalmente a festiva) sempre me assustaram. Criei uma certa imunidade contra ter fé e esperança demasiadas. Foi traumático saber que Vianinha foi expulso da favela e xingado de comunista pela comunidade. Comecei a entender ali minha experiência de ter vivido no subúrbio e em meio a pessoas ultra-conservadoras. As leituras de Nelson Rodrigues também me ajudaram. O anjo pornográfico tinha a lucidez que apontava a cegueira dos outros.
A verdade doeu e causou desilusão. O país em mãos de Pedro Malan e Armínio Fraga, a irmã Argentina sofrendo os males das receitas econômicas do FMI, Bush eleito presidente dos Estados Unidos: melhor mesmo era ficar com a poesia, o cinema, a música. Embrenhei-me neles, no nada. A letargia só foi desfeita pela experiência de trabalhar na política de O Globo e testemunhar a vitória de Lula presidente.
Desde domingo passado, estou com a sensação de que nada foi em vão. De que valeu a pena não ter dado ouvidos aos pais e me revoltar por tê-los visto votar no Collor. Valeu a pena passar noites e noites para tentar, sozinha, resgatar a história de um país que foi escrita com o sangue dos loucos (e burros) que pegaram em armas contra todas as ditaduras militares, com a loucura dos tantos artistas que sacrificaram sua arte por um objetivo político (nos deram bons filmes e músicas, mas o mundo não mudou), com a perseverança dos que vislumbraram caminhos políticos para um pacto social (não no sentido clássico do termo), que nunca chegou a acontecer. Valeu a pena ter tentado entender que país era esse que calava uma geração em nome de um milagre econômico que iludiu as classes médias - que aplaudiram a passagem dos tanques militares ao Rio e ulularam com a destruição do prédio da Une na praia do Flamengo e que desfilaram com seus terços para defender a pátria, a família e a liberdade. Valeu a pena nascer num país que tem uma história de tantas injustiças, mas consegue parir homens como Betinho, Apolônio de Carvalho, Sérgio Buarque de Hollanda e Frei Beto. Valeu a pena ter visto pessoas que esperaram treze anos (desde 1989) para soltar o grito dos oprimidos que ainda têm esperança. Valeu a pena estar viva para ver a eleição de um ex-operário que receberá a faixa presidencial de um sociólogo. Valeu a pena cobrir a festa da vitória no Rio de Janeiro. Valeu a pena ter derramado tantas lágrimas de emoção.
Eu mereço e tenho muito orgulho hoje: de ser jornalista, de ter convencido meus pais a votarem no Lula, de ter teclado 13 na urna num dia histórico para o Brasil e para o mundo. A vitória é minha também, é de todos os brasileiros. A responsabilidade pela mudança também é nossa, da sociedade inteira. Que ela faça jus ao homem que foi eleito com o intuito de mudá-la. A sinceridade está nos olhos dele, a esperança, nos do povo. Vamos cobrar, sim. Vamos agir, também. Alguma coisa tem que dar certo. O samba de uma nota só, tocado durante anos foi retirado da vitrola. Viva a diversidade de idéias, de alternativas, de sonhos. Viva o Brasil.
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