Lameblogadas

quinta-feira, outubro 16, 2003

Não sou fã do cinema marginal, mas gostei de alguns poucos filmes do movimento. Um deles, "O bandido da Luz Vermelha", clássico do cinema nacional, dirigido pelo Sganzerla. Cineasta marginal que respeito, Sganzerla foi capa ontem do Segundo Caderno, numa matéria ótima do Mauro Ventura. O cara luta contra um câncer e comoveu a platéia do Festival do Rio, ao aparecer por lá em uma cadeira de rodas, acompanhado da mulher, Helena Ignez, que também foi casada com Glauber.



Luz verde para Sganzerla

Cineasta, que luta contra doença, recebe homenagens por toda parte

Rogério Sganzerla vive dias de unanimidade - algo incomum para um cineasta marginal. Foi ovacionado na sessão de seu último filme no Festival do Rio, ganhou um prêmio especial na mostra, foi citado pelo ministro da Cultura, Gilberto Gil, no lançamento em Brasília do Programa Brasileiro de Cinema e Audiovisual, segunda-feira à noite, e perdeu a conta de elogios, tapinhas nas costas e homenagens que tem recebido. Ele está feliz com a repercussão de seu novo trabalho, mas conserva o discurso combativo de sempre:

- Todo mundo me elogia, mas ninguém me deixa filmar.

"Signo do caos", que estréia ano que vem em circuito comercial e acaba de ser selecionado para o Festival de Brasília, em novembro, levou seis anos para ser feito. Dinheiro que é bom pouco apareceu. A Riofilme ajudou na finalização, mas até os rolos de filmes Sganzerla teve que comprar do próprio bolso.

- Não se investe num cinema mais ousado, somente no dejà vu. Só querem um cinema que subjugue - diz o diretor de "O bandido da luz vermelha". - Parece piada, mas nenhum produtor percebeu que poderia se prestigiar com isso. Não entenderam que meu filme é um hino de amor ao cinema.

E é mesmo. "Signo do caos" faz uma defesa da liberdade de expressão e uma condenação veemente à censura, seja ela ideológica, econômica ou estética. Ele não pôde comparecer ao último Festival de Gramado, mas sua mulher, a atriz Helena Ignez, leu um texto que o cineasta escreveu sobre seu filme: "Trata da censura apocalíptica e absurda, que antes era política e hoje é dos meios de produção, dos donos do mercado." Ele define "Signo do caos" como um antifilme, em contraponto aos "superfilmes" lançados a toda hora.

- Num mercado ocupado só saem filmecos. Meu filme é o contrário de tudo o que está aí.

Sganzerla fala com a indignação habitual, mas a voz sai baixa e pausada. Aos 57 anos, ele luta contra um tumor no cérebro, que o levou à mesa de operação em agosto. Ainda está de cadeira de rodas e anteontem à noite teve que ser internado em São Paulo para dar continuidade ao tratamento.

Dias antes da internação, numa tarde de sexta-feira, recebeu o repórter em meio a uma sessão de acupuntura. De manhã, já tinha feito fisioterapia e massagem em seu apartamento na Urca, onde um beija-flor que ele batizou de Teca fez seu ninho no pinheiro da varanda.

- Ele tem estado muito animado. Quer ir às festas, a gente é que não deixa - diz Helena, casada com o diretor há 35 anos.

Acordou às 3h e quis ir à festa do filme ’Benjamim’

Uma das filhas, Sinai, diz que outro dia ele acordou às 3h e queria ir na festa do filme "Benjamim", de Monique Gardenberg. Aí já era demais.

- Ele fala o tempo todo: "Minhas filhas são umas censoras" - brinca Sinai.

Dia desses, foi ver o filme de João Moreira Salles sobre Nelson Freire e chorou de emoção. Apesar de debilitado, tem comparecido às homenagens. Na segunda-feira, Gil citou o diretor como um dos responsáveis por ajudar na transferência da Agência Nacional de Cinema (Ancine) para o Ministério da Cultura e disse que recebeu uma cópia do filme:

- Ainda não vi, mas vou assistir com carinho.

Dono de um temperamento difícil, Sganzerla mantém a contundência - "Todo gênio aqui se dá mal, nossos talentos são tratados a pontapés pelos burocratas" - mas a família diz que ele abrandou a agressividade e está mais emotivo.

- Ele voltou a ficar mais fraternal - diz Helena, com a concordância da filha Djin, que vê o pai mais sensível às coisas que estão ao redor.

"Signo do caos" ainda nem foi lançado comercialmente e Sganzerla já tem outro projeto na manga. Ele inscreveu o argumento de um novo filme no concurso de roteiros da Ancine. É "Luz nas trevas - Revolta de Luz Vermelha", uma continuação de seu trabalho mais famoso.

- É passado nos dias atuais. O roteiro foi feito há muitos anos, mas é atualíssimo. Trata de uma violência não explícita, mais cerebral - explica.

"O bandido da luz vermelha" tornou-se um clássico do cinema udigrúdi, como foi batizado aqui o cinema underground.

- O Sílvio Renoldi, que montou "O bandido", disse que o Rogério chegou para ele com uma mala cheia de filmes e avisou que os outros montadores não tinham aceitado - lembra Helena. - Depois de pronto, o filme virou moda e todo mundo chegava para o Sílvio e falava: "Eu quero que monte que nem ’O bandido’." E ele dizia: "Para montar que nem ’O bandido’, tem que filmar que nem ’O bandido’."

Renoldi repete a dobradinha com Sganzerla em "Signo do caos", 16º título da carreira do diretor. Os cortes abruptos, as cenas repetidas - "aliteração", como prefere o cineasta - e a montagem descontinuada do filme de 1968 estão presentes novamente agora. Mas "Signo do caos" narra de forma alegórica a luta entre a criação artística e a intolerância. A primeira parte é filmada em preto-e-branco. Uma estranha carga chega ao cais da Praça Quinze. A alfândega descobre que se trata de um filme e o material é analisado pelo chefe dos censores, dr. Amnésio (Otávio Terceiro), do Departamento de Informação e Propaganda (DIP) de Getúlio Vargas. Ele considera as imagens abusivas. O repórter Edgar Morel (Sálvio do Prado) defende a liberação. O filme é "It’s all true", que Orson Welles veio rodar no Brasil e não conseguiu terminar porque não quis retratar uma visão oficialesca do país. Nos porões do DIP, Amnésio proclama a "guerra ao gênio", assobia "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, e diz: "É um lixo, pernóstico, nojento. Mostra um punhado de crioulos sambando. Quem é que vai querer ver isso?". Morel tenta argumentar: "São imagens tremendamente poéticas."

A segunda parte do filme, em cores, mostra uma festa que reúne censores e uma bailarina que exibe um número musical inspirado em samba, cachaça e futebol. Enquanto a moça - que simboliza o Brasil - apresenta-se, eles continuam a criticar as imagens de Welles. A bailarina é interpretada por Camila Pitanga.

- Achei que ela tinha physique du rôle, que era perfeita para aquilo. Ela é linda, né? - pergunta, já sabendo a resposta.

Ele conta que Camila ligou há poucos dias.

- Conversamos uma hora e meia. Ela disse que adorou o trabalho e que faz qualquer tipo de filme conosco.

Com "Signo do caos", Sganzerla faz sua tetralogia sobre o cineasta americano, que inclui "Tudo é Brasil", "A linguagem de Orson Welles" e "Nem tudo é verdade".

- Peguei uma situação-limite para falar contra todo tipo de obstáculo. Ninguém mais que Orson foi tolhido pela burocracia reinante. E olha que ele era o maior cineasta do mundo - diz. - Temos que ficar vigilantes para não deixar os amnésios avançarem.