Lameblogadas

segunda-feira, novembro 27, 2006

Imagine o Paulo Cesar Pereio no lugar no lugar de um Eduardo Coutinho, num documentário em que o ator vive um motorista de caminhão, sem saber, na vida real, dirigir. Essa mistura entre ficção e realidade filmada rendeu um filme magnífico. "Iracema, uma transa amazônica", de 1974, se passa num pedaço da Amazônia então ainda marcado pela guerrilha do Araguaia e onde os conflitos de terra dariam, no futuro, um Eldorado, mas dos Carajás.

Pereio está impagável, como sempre, no papel de entrevistador. Ele conduz o filme, construindo diálogos, incentivando os nativos a contarem suas histórias e contracenando com a índia Edna de Cássia, a Iracema do título. Nunca sabemos quando as cenas são realidade ou ficção, se os personagens são atores contratados por lá ou moradores da região. Não importa. Os problemas estão todos retratados ali: desmatamento, extração ilegal de madeira, prostituição, trabalho escravo, expropriação de terras pelos grileiros, pobreza, fé - sobretudo num Brasil que se imaginava grande, como o personagem de Pereio.

O relacionamento de Tião Brasil Grande com a índia Iracema se dá na inacabada Transamazônica, na boléia do caminhão não-dirigido de Pereio. Tião negocia madeiras, depois gado. É um desbravador da estrada e da prostituta que nela busca um caminho sem volta. A decadência da índia até o fim do filme é o retrato do que se transformou o projeto da Transamazônica.

Recentemente, este belo e quase inédito filme de Jorge Bodansky e Orlando Senna saiu em DVD. Está à venda nas lojas e disponível nas locadores. É um programaço para quem gosta de cinema brasileiro. Os extras mostram entrevistas com diretores, crítica e elenco. A Iracema não seguiu carreira, é hoje uma dona de casa que ainda rejeita o rótulo de índia e explica, na entrevista, uma das cenas mais curiosas do filme. Vale a pena.


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Eu tinha muita curiosidade para ver esse filme desde que, numa noite de 2000, fui até o apartamento de Orlando Senna, em Ipanema, para uma entrevista sobre Glauber Rocha. O prédio em que ele mora se chama Iracema e, ao chegar, comentei a coincidência. Ele perguntou se eu já tinha visto o filme, se surpreendeu por eu o conhecer e, mais, porque ninguém, nem ele nem a mulher os amigos, jamais tinha notado esta curiosidade. Eu, que por um motivo secreto, fiz lembrar a ele a irmã de Glauber, ganhei sua confiança de imediato. Orlando falou horas sobre o convívio com Glauber nos cineclubes e jornais da Bahia (os dois eram críticos de cinema da imprensa baiana), me mostrou o lugar da casa onde o amigo baiano passou boas horas escrevendo à máquina e me levou até sua alcova _ onde ficava o videocassete e a TV da casa _ para me mostrar cenas inéditas de Glauber que ele guarda com carinho.

Orlando e Conceição, sua mulher, são pessoas místicas. Na casa não se entra de sapato nem com energia negativa. Eu fui bem-vinda. Aquela foi uma noite breve, porém mágica e que, segundo ele, contou com a presença também de Glauber.