Lameblogadas

segunda-feira, setembro 30, 2002


Rondó de mulher só

Sempre estive duramente acorrentada a essa fatalidade, amor. Muito antes que o homem surja em nossa vida, sentimos fisicamente que somos servas de uma doação infinita de corpo e alma.
O homem é apenas o copo que recebe o nosso veneno, o nosso conteúdo de amor. Não é por isso que o homem me atemoriza, quando aqui estou outra vez, só, em meu quarto: o que me arrepia de temor é este amor invisível e brutal como um príncipe.
Quando se fala em mulher livre, estremeço. Livre como o bêbado que repete o mesmo caminho de sua fulgurante agonia.
A uma mulher não se pergunta: que farás agora da tua liberdade? A nossa interrogação é uma só e muito mais perturbadora: que farei agora do meu amor? Que farei deste amor informe como a nuvem e pesado como a pedra? Que farei deste amor que me esvazia e vai removendo a cor e o sentido das coisas como um ácido?
É quando o homem desaparece de minha vida que sinto a selvageria do amor feminino. Pois não é na voluntariedade do sexo que está a selvageria da mulher, mas em nosso amor profundo e incontrolável como a loucura. O sexo é simples: é a certeza de que existe um ponto de partida. Mas o amor é complicado: a incerteza sobre um ponto de chegada.
Aqui estou, só no meu quarto, sem amor, como um espelho que aguarda o retorno da imagem humana. O homem sem rosto, sem voz, sem pensamento, está a caminho. Estou colocada nesse caminho como uma armadilha infalível. Só que a presa não é ele - o homem que se aproxima - mas sou eu mesma, o meu amor, a minha alma. Sou eu mesma, a mulher, a vítima das minhas armadilhas. Sou sempre eu mesma que me aprisiono quando me faço a mulher que espera um homem, o homem. Caímos sempre em nossas armadilhas. Somos irremediavelmente líquidas e tomamos as formas das vasilhas que nos contêm. O pior agora é que o vaso está a caminho e não sei se a taça é de cristal, cântaro clássico, xícara singela, canecão de cerveja. Qualquer que seja a sua forma, depois de algum tempo serei derramada no chão. (Paulo Mendes Campos em "O amor acaba - Crônicas líricas e existenciais")