Ele ia ao Maraca todos os domingos e, reza a lenda, não enxergava nada que acontecia dentro de campo. A falta de visão era compensada pela capacidade infinita de dramatizar estórias a partir de um pequeno detalhe, contado ao pé do ouvido pelo seu acompanhante. O fato, nu e cru, apenas, não o interessava. Certa vez, escreveu sobre o video-tape: "O povo não sabia como conciliar as duas coisas: - o delírio dos locutores e a exata veracidade da imagem. Após a batalha de ontem, eu vi tudo. A verdade está com a imaginação dos locutores. E repito: - a imaginação está sempre muito mais próxima das essências. (...) Disseram os locutores que o Brasil fizera, contra a Inglaterra, uma exibição deslumbrante. Pura imaginação e, por isso mesmo, altamente veraz. O video-tape demonstrou o contrário. Azar da imagem."
Em suas crônicas de futebol, ele inventava personagens como a grã-fina das narinas de cadáver e o Sobrenatural de Almeida; falava de suas obsessões (o amigo e escritor Otto Lara Resende, uma de suas preferidas); transformava anônimos em heróis e objetos, em humanas criaturas. Declarava seu amor pelo Fluminense (não dá para saber em que jogos seu time do coração realmente merecia a vitória como ele escrevia aos leitores) sem o pudor idiota da objetividade. Todos os elementos rodrigueanos de outros textos, como os do romance, das crônicas políticas e até do teatro são encontrados nesses sobre a paixão maior do brasileiro.
A crônica abaixo é do "À sombras das chuteiras imortais", primeira coletânea de crônicas futebolísticas do Nelson. Para o meu amorzinho, que adora esse texto e me deu o livro, já quase devorado:
"Amigos, ontem foi o lírico domingo dos velhos. Aqui, Barbosa, fechando o gol do Vasco; em São Paulo, Jair, decidindo o jogo para o Santos. Duas eternidades e ambas viçosas, ambas salubérrimas. Tanto Jair como Barbosa podiam ser, hoje, o meu personagem da semana. Mas há melhor, amigos, há melhor! Refiro-me ao "Caixa Econômica", a mais recente, inesperada e espetacular celebridade do futebol brasileiro. Antigamente, em matéria de Caixa Econômica, só se conhecia a própria. Mas, graças ao Fla-Flu, fez-se uma descoberta sensacional. Sim, amigos: - existia, aqui, nas nossas barbas, sem que o percebêssemos, o "Caixa Econômica" bandeirinha. Foi a grande e, direi mesmo, foi a contundente surpresa do Fla-Flu!
O bandeirinha! É, na história do futebol, o sujeito mais secundário. A humildade de sua função só tem paralelo com a do gandula. E houve uma época em que o bandeirinha era um franciscano apanhador de bola. Foi preciso que o profissionalismo aparecesse e o arrancasse de sua compacta obscuridade. Então ele subiu social e economicamente. (...) Todavia, nenhum bandeirinha conseguiu, jamais, o furioso destaque do "Caixa Econômica". Num Fla-Flu sensacional, ele conseguiu ofuscar o juiz, os jogadores, o outro bandeirinha. Foi, atrevo-me a dizê-lo, o solista do espetáculo.
Aliás, tudo no "Caixa Econômica" parece predispô-lo para a celebridade e para a glória. A começar pelo apelido. É "Caixa Econômica", como poderia ser "Banco de Crédito Real de Minas Gerais", "Prolar S. A." etc. etc. E vamos e venhamos - ninguém consegue chamar-se "Caixa Econômica" impunemente. Há entre o nome de um sujeito e o seu destino uma conexão inevitável. Napoleão teria que ter um destino napoleônico. E o nosso "Caixa Econômica" não poderia viver eternamente obscuro e eternamente humilde. (...)
Ao começar e até o encerramento da primeira etapa, o "Caixa Econômica" ainda permanecia ignorado, ainda permanecia inédito. E, súbito, na etapa final, surgiu a sua oportunidade napoleônica. Imagino que tenha ocorrido com o nosso herói uma crise de saturação. Cansou-se de ser um fósforo apagado dentro do jogo. Achou talvez abusivo que o campo fosse um espaço privativo dos jogadores e do juiz. E fez o que nenhum outro bandeirinha, jamais, teve o desplante de fazer: - entrou no campo e pôs-se a passear no gramado com uma soberana naturalidade. E, de repente, acontece o inconcebível: - uma tabelinha de um jogador rubro-negro com o "Caixa Econômica"!
Dizem que a bola bateu, simplesmente bateu, no fabuloso bandeirinha. Amigos, sejamos mais líricos e menos objetivos. Vamos admitir que o "Caixa Econômica" deu um passe que caiu como uma luva, ou melhor, uma meia no pé de Henrique. Jamais Zizinho no apogeu, ou Jari, ou divino Domingos da Guia conseguiram ser tão precisos, exatos, perfeitos. O estupor do Fluminense foi de tal ordem que o time parou, de ponta a ponta, e Henrique, vivíssimo, penetrou com furiosa velocidade. Dida recebeu a bola para marcar. Vejam vocês a trama diabólica: - "Caixa Econômica" - Henrique - Dida! O Fla-Flu continuou, mas a verdade é que o tricolor estava perdido. O que desintegrou meu time não foi nem o gol, mas a intervenção sobrenatural do "Caixa Econômica". (...)
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