Influenciada pelas leituras dos textos de Nelson Rodrigues, no primeiro mês de trabalho na Nacional, d'O Globo, eu cometi a "imprudência" de usar um único e escasso adjetivo num texto que narrava um fato divertido da nossa história. Era a memória sobre o dia em que o prefeito eleito de São Paulo, Jânio Quadros, desinfetou a cadeira onde o seu concorrente derrotado, Fernando Henrique, havia sentado na véspera do pleito.
Pois bem, dia seguinte eu levo um pito do Luiz Garcia no famoso e temido Algumas, email com críticas que ele envia diariamente à redação. Lembro do fato agora lendo uma crônica futebolística do meu querido Nelson. Ele havia de me defender num tribunal por ter abusado do meu direito de querer florear o texto e, por extensão, o fato.
A propósito, reproduzo aqui mais um dos extraordinários textos desse meu escritor preferido. Desculpem, mas só respiro Nelson Rodrigues desde a virada do ano... Esse agora é do livro "A pátria em chuteiras". É mais um dos exageros dramáticos do jornalista que, quando repórter policial, inventava estórias e personagens em suas reportagens.
Não dá para concordar com tudo que ele escreve, mas havemos de ter em mente que o repórter deve se ater à verdade, sim - Nelson exagera - mas procurar nela um lance inusitado, que chame a atenção para algo transcedente ao fato.
O passarinho
Quando o Brasil levantou o Pan-Americano, eu só lamentei uma coisa: - que Bilac não estivesse vivo. Não o Bilac da "Frinéia", do "Nunca morrer assim", das "Virgens mortas", mas sim o Bilac dos tiros de guerra. Infelizmente, não mais existem, nem os tiros, nem o poeta. E é pena. Outrora, cada acontecimento tinha um Homero à mão, ou um Camõs, ou um Dante. Recheado de poesia, entupido de rimas, o fato adquiria uma dimensão nova e emocionante.
Ora, faltou, justamente, à vitória gaúcha, o seu poeta. Os correspondentes brasileiros, que estavam no México, deviam mandar, de lá, telegramas rimados, ungidos de histerismo cívico. Mas como estamos em crise de Bilacs, o fabuloso triunfo só inspirou mesmo uma pífia correspondência, que nos enche de humilhação patriótica e vergonha profissional. Cada cronista da delegação, em vez de babar materialmente de gozo, mandou dizer ao seu jornal o seguinte: - "que os argentinos jogaram mais, que os argentinos mereceram vencer"(...).
Vejam vocês em que dá a mania de justiça e da objetividade! Um cronista apaixonado havia de retocar o fato, transfigurá-lo, dramatizá-lo. Daria à estúpida e chata realidade um sopro de fantasia. Falaria com os arreganhos de um orador canastrão. Em vez disso, os rapazes cingiram-se a uma veracidade pura e abjeta. Ora, o jornalista que tem o culto do fato é profissionalmente um fracassado. Sim, amigos, o fato em si mesmo vale pouco ou nada. O que lhe dá autoridade é o acréscimo da imaginação.
(...) Modelo de eficiência profissional foi aquele repórter que viu um incêndio. (...) O jornalista espia o fogo e conclui que se tratava, na verdade, de um incêndio vagabundo, uma vergonha de incêndio. Qualquer mãe de família o apagaria com um humilhante regador de jardim. Volta o repórter para a redação e, lá, escreve uma página de jornal sobre o fracassado sinistro. E mais: - põe um canário inventado no meio das labaredas, um canário que morre cantando. No dia seguinte, a edição esgotou-se. A cidade inteira, de ponta a ponta, chorou a irreparável perda do bicho.
Vejam vocês a lição de vida e de jornalismo: - com duas mentiras, o repórter alcançara um admirável resultado poético e dramático. O que faltou aos nossos correspondentes do México foi, justamente, o passarinho. Fizemos uma África miserável, uma ilíada tenebrosa, papamos o Chile, o Peru, o México, a Costa Rica e quase a Argentina. E nenhum dos confrades, adidos à delegação, lembrou-se de recriar o canário, de assassiná-lo outra vez. Sem passarinho, não há jornalismo possível.
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