Aracy de Almeida, por Antônio Maria
Filha de pastor protestante, sabe de cor alguns trechos da Bíblia. Numa mesa de bar, em pausa de conversa, quando menos se espera, lá vem a tirada: "Vendo, então, Jacob, que havia mantimento no Egito, disse a seus filhos - "Por que estais olhando uns para os outros?" E reforça, para que não duvidem da citação: "isto é do Livro do Gênesis, capítulo 42". Em menina, quando lhe pediram para cantar na igreja, fez apenas esta pergunta: "e dinheirinho, como é"? Gosta imensamente de três coisas: pintura, tango argentino e cinema. Seu pintor preferido é Clóvis Graciano, cujos quadros estão em todas as paredes de sua casa, em São Francisco Xavier. Morre de amores por quatro ou cinco amigos e, ao seu lado, sente o maior desprezo pelo resto da humanidade. Se entra num bar e os surpreende com uma namorada, a moça pode ser um anjo saindo do Sacré Coeur, Aracy fecha a cara e, antes do boa noite ou de como vai, grita da porta: "Temos conversado. Enquanto você estiver com essa vigarista, não fale comigo". Em São Paulo, numa época de ternura com Maurício Barroso, encontrou-o, certa vez, num bar com uma moça de sociedade. Meio sem jeito, temendo os ciúmes de Aracy, Maurício disse somente: "Alô, Aracy"... naquela hora, num grito do coração, celebrizou esta generosidade nunca vista. Este cronista, se não soubesse evitar os seus rasgos de prodigalidade, seria dono, hoje, de todos os quadros de sua casa, máquinas de escrever e dezenas de isqueiros. Guarda, porém, algumas de suas fotografias, com dedicatórias assim: "Ao meu poeta, com o bem-querer da infeliz Aracy de Almeida - "Poeta Maria, não brigue com o meu Lobo. Aracy de Almeida" - "Meu Maria, quando eu morrer, escreva uma coisa pra mim, dizendo que ficou com saudades. Aracy de Almeida". Num chaveiro de ouro, presente de aniversário, mandou gravar: "Maria, se eu morresse amanhã, deixaria esta lembrança para você". Não é bonita, sabe disso e não luta contra isso. Não usa, no rosto, baton, rouge ou qualquer coisa, que não seja água e sabão. Ultimamente corta o cabelo de um jeito que a torna muito parecida com Castro Alves. Seus vestidos são simples, mas, sempre de muito boa qualidade. Orgulha-se da beleza do seu busto e, quando surge qualquer dúvida, não faz a menor questão de exibi-lo, esteja onde estiver. Entende, tanto quanto um clínico, de achaques e doenças. Está a par de todos os remédios e repete fórmulas inteirinhas, com os nomes intrincados das drogas e as dosagens decimais de cada um. Gasta por mês dois mil cruzeiros num exame médico rigorosíssimo. À noite, anuncia na mesa do bar: "a titia, hoje, abriu a máquina e fez uma revisão geral. Não está vasando, nem queimando óleo". Bebe uísque puro, com gelo. Depois do segundo, fica muito terna e diz umas coisas de sua alma, que surpreendem pela doçura. Só anda de automóvel, mas não pensa em comprar o seu carro. Serve-se do táxi do Inglês (chofer de São Francisco Xavier) a quem paga de 500 a 600 cruzeiros por dia. É uma verdadeira fábrica de gíria e não conversa meia hora, sem dizer matusquela, mincho, argolo, vivaldina (em relação a ela mesma - pessoa esperta, viva), alancatréa, de araque etc. É uma esplêndida cozinheira, sendo de sua especialidade um feijão que ela chama poroto, três maneiras de preparar galinha e umas empadas de camarão, cuja massa é um segredo de morte. Aos domingos, depois do futebol, vou à sua casa, onde me esperam: um banho quente, um jantar, uma cama com um ventilador ligado em cima e uma vitrola tocando tangos. Quando telefonam ou chega gente, diz que eu não estou e fica falando: "meu Maria, coitado, precisa descansar, porque ele é doido e trabalha muito". Em casa, usa os trajes mais estranhos e engraçados. É comum a gente encontrá-la com um calção e uma camisa sem manga do companheiro, um boné na cabeça, sapatos de tênis.
Atualmente, Aracy está em São Paulo. Deixou o rádio carioca e, sem dar entrevistas (é contra qualquer fantasia publicitária, gostando de valer pelo que é) foi ser exclusiva da Rádio Record. Confessa que está cansada de cantar, embora esteja cantando melhor do que nunca. Faz de cada música um caso pessoal e entrega-se às canções do seu repertório como quem se dá um destino. Não sabe chorar e não se lembra de quando chorou pela última vez. Mas a quota de amargura que traz no coração, extravasa nos versos tristes de Noel: 'quem é que já sofreu mais do que eu? Quem é que já me viu chorar? Sofrer foi o prazer que Deus me deu"... e vai por aí, sem saber para onde, ao frio da noite, na espera de cada sol, quando o sono chega, dá-lhe a mão e a leva para casa.
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