Lameblogadas

domingo, setembro 24, 2006

Dizem que ela existe pra proteger

Repórter de política só costuma visitar os morros e favelas cariocas em períodos eleitorais e, normalmente, com um aparato de proteção que, se não diminui a ansiedade e o medo de andar em território proibido, pelo menos conforta - tamu junto com as autoridades, afinal. Esses eventos são precedidos de negociações com a associação de moradores ou alguma entidade local que tenha a confiança da "comunidade", inclusive do "pessoal do movimento". Ninguém entra sem fazer contato prévio e obter a licença para circular.

Ontem, fui à Cidade de Deus para acompanhar o candidato tucano à Presidência, Geraldo Alckmin. Com a presença de MV Bill, não haveria por que se preocupar, afinal ele é um líder respeitado em qualquer comunidade do Rio. Mas a chegada é sempre tensa. De um ponto de encontro, uma moça da Central Única de Favelas (Cufa) nos levou até a sede da entidade, criada e mantida pelo prestígio do rapper. Cobrimos o evento, que tinha ainda a presença do prefeito do Rio, Cesar Maia, da candidata apoiada por ele ao governo do estado, Denise Frossard (PPS), e outros políticos.

Caminhamos pela Cidade de Deus, uma experiência inédita e enriquecedora para mim, assistimos às apresentações de teatro e dança de rua dos meninos e meninas da Cufa, entrevistamos todo mundo, não vimos sinal do "movimento" nem tivemos qualquer incidente. Ok, combinaram com os manos, mas esqueceram de avisar à polícia.

Na saída da favela, o carro do jornal - preto e com insufilm, mas também com dois logotipos que o identificavam como veículo de reportagem - foi parado por policiais, que nos apontavam armas pesadas e gritavam para sairmos do carro. Imediatamente, abrimos as janelas e mostramos nossos crachás. "Sai do carro, sai agora". Foi a primeira vez que tive uma arma apontada em minha direção, nesses 31 anos de Rio de Janeiro. Enquanto um dos policiais, mais exaltado, gritava com a outra repórter que não deveríamos ter saído da favela com os vidros fechados (distraídas e com um calor absurdo, cometemos a insanidade de ligar o ar-condicionado), o outro insinuava que eu, com o crachá de repórter no peito e um bloquinho na mão, tinha entorpecentes na minha bolsa. "Tem certeza que não tem entorpecente aí? Não quero saber se você é do Globo, se é jornalista, se está trabalhando, quero saber se tem entorpecente na bolsa. Posso revistar? Não vou encontrar nada, tem certeza?" Eu tremia que nem vara verde, como costuma dizer minha mãe. Ele não revistou, mas a bolsa estava à sua disposição. A bolsa, mas não o meu dinheiro.

Nessa hora, a outra repórter respondia ao comandante da operação que não vivíamos sob a lógica de bandidos, mas de cidadãos, por isso nos distraímos ao fechar os vidros e ligar o ar-condicionado. Mas que tínhamos feito tudo o que eles nos mandaram e não havia necessidade deles continuarem exaltados, com a arma apontada, gritando. Acho que demoraram uns cinco minutos para abaixarem as armas. Não os ânimos.

Os policiais, na saída da Cidade de Deus, desconheciam a informação de que estava acontecendo um evento político lá dentro, com um candidato a presidente de um dos maiores partidos do país, com a presença do prefeito da cidade e de uma candidata a governadora. Foi quando passou o carro da Frossard, que também deixava a favela ao fim do evento. E o carro de outro jornal, que nos acompanhava na cobertura. Todos saltaram para verificar o que estava acontecendo e, no fim das contas, nos socorrer. Frossard desceu do carro e foi conversar com os policiais, que não devem topar muito a candidata que mostra em seu programa eleitoral as péssimas condições da polícia militar do Rio de Janeiro. A fotógrafa do outro jornal ainda tentou registrar a cena, mas quase apanhou do policial mais exaltado. De qualquer forma, eles nos deixaram ir.

Do episódio, tiramos várias conclusões. A primeira é que os policiais ficaram com muita raiva de nós pelo erro fatal que quase cometeram. A segunda, óbvia, mas não menos triste, que eles são despreparados psicológica e materialmente para enfrentar a guerra com o tráfico. Guerra que mata inocentes, principalmente os moradores que nada têm a ver com o tráfico e que perdem filhos para a polícia e para os bandidos - ou ambos, no limite em que não distingüimos onde começa um e termina o outro. Guerra que, por pouco, não fez novas vítimas ontem. Tivemos a nítida impressão de que não atiraram por pouco, por muito pouco, ou por sorte nossa mesmo.

Continuo morrendo de medo tanto de blitz quanto de qualquer bonde. Tudo pode dar na mesma. Salve-se quem puder.