Lameblogadas

sexta-feira, dezembro 12, 2003



Na infância, lembro deles visitando a minha casa. Vinham com coleções de livros infantis, enciclopédias, histórias da Bíblia para crianças. Todas os que mamãe comprou pra mim já foram doadas. Pena.
Sempre admirei a profissão de livreiro. O que visita a redação do Globo pelo menos uma vez por semana, o França, é uma figura muito querida por aqui. Ele é tão bom que conhece o gosto de cada jornalista que já comprou com ele. Para mim, sempre oferece livros sobre samba. Quando o novo Elio Gaspari chegou, veio me mostrar. "Lembra que você comprou os dois de uma vez ano passado?". Claro que sim. Foi no dia nacional do Samba e carreguei comigo os dois volumes no trem para Osvaldo Cruz.
O França não anota os pedidos. Da primeira vez, estranhei. Nem perguntou meu nome e vai se lembrar do livro que eu quero? Pois não é que trouxe certinho? Memória de quem tem amor pela profissão. Ele conhece TODOS os livros que pedimos. "Ah, esse não vai sair agora. Saiu no jornal que ele estará à venda em dezembro, mas a editora ainda não finalizou o trabalho".
França conhece o valor dos livros, esses objetos fundamentais na nossa vida, e ainda dá bons descontos.



Por falar na Travessa da Travessa, lá trabalha um dos vendedores mais simpáticos da praça. Ontem, ao perguntar o preço de um CD, recebi um sinal de "não compra". Logo que pôde, ele veio para o outro lado do balcão e me indicou dois lugares onde o produto estava mais em conta. Um era uma livraria concorrente.



Não há programa melhor que comer um pãozinho na manteiga com café expresso no fim de tarde. Se isso for na Travessa da Travessa, então...
Ontem, depois de me deliciar nas estantes de uma das livrarias preferidas (a outra é a Argumento), sentei no café com o desejo de comer pão com manteiga na chapa.
O garçom solícito explicou que isso não havia, mas que ele ia dar um jeito de pedir ao chef para pôr a baguete no forninho especialmente para mim.
O que veio à mesa foi uma coisa sensacional. Seis pedaços de pães moreninhos, com a manteiga derretida. Tudo muito saboroso, ainda mais pela companhia do meu amorzinho.



Não há nada mais mineiro que doce de leite com queijo. Nos tempos de estágio aqui no Globo, eu ganhava muitas latas vindas de São Sebastião do Paraíso, uma cidadezinha pequena, perto de Alfenas, onde o meu amigo Mario viu, pela primeira vez na vida, uma bananeira.
Nesse cantinho de Minas, nasceu o meu grande amigo Ricardo Westin. Que ontem me proporcionou mais uma linda emoção nesses dois anos de convívio. Uma carta chegou pelo correio, manuscrita, como as que eu sempre gostei de receber.
Menino, obrigada pela missiva, pelo carinho, pela amizade. Os corredores da redação do Globo e a editoria esportiva perderam a graça quando você foi embora. Com certeza, os emails diários, os telefonemas fortuitos e os encontros breves não dão conta da saudade que sinto de você. Meu doce de leite, São Paulo não te merece. Assim que puder, volta pra cá.

quinta-feira, dezembro 11, 2003

Modelo por um dia

Hoje, ao chegar na redação, o fotógrafo Custódio Coimbra me fez um pedido inusitado. Queria me fotografar para um especial sobre as diferentes etnias brasileiras que ele está preparando e que vai virar livro. Fiquei meio sem graça, mas aceitei.
Quem já teve oportunidade de trabalhar com o Custódio, sabe o quanto ele é bom. Sem exagero, ele fotografa como Cartier-Bresson: sem ser notado. O repórter está apurando a matéria, ele fica ali ao lado, conversa também. De repente, tem um insight e clica. Da reportagem mais banal, consegue trazer novos ângulos, imagens não usuais. Para o repórter, é um privilégio trabalhar com ele.

Duas imagens bonitas:





Quase todos os dias, me pego assoviando as melodias de suas músicas. Posso dizer que comecei a me apaixonar pelo samba, sem ser o de enredo, por causa dele e do Cartola. Já fiz dois lides usando seus versos. Um trabalho bobo de faculdade analisando suas letras. Adoro ver o meu amor cantando suas músicas, principalmente essa aí embaixo, que me lembra a primeira vez que fui ao Bip Bip, o bar que mudou a minha vida. Só está faltando ler a alentada ler a biografia que o João Máximo escreveu sobre ele, o aniversariante de hoje, Noel Rosa.

Filosofia

O mundo me condena
E ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber
Se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome
Mas a filosofia
Hoje me auxilia
A viver indiferente assim
Nesta prontidão sem fim
Vou fingindo que sou rico
Para ninguém zombar de mim
Não me incomodo
Que você me diga
Que a sociedade
É minha inimiga
Hoje cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba
Muito embora vagabundo
Quanto a você
Da aristocracia
Que tem dinheiro
Mas não compra alegria
Há de viver eternamente
Sendo escrava desta gente
Que cultiva hipocrisia

segunda-feira, dezembro 08, 2003



Ele tem três anos e uma sensibilidade que comove. No meio de um desentendimento familiar, se agarrou ao meu colo e disse: estou muito feliz de estar aqui com vocês. Meu olho encheu de lágrimas.
Na estrada para Friburgo, suas mãozinhas foram me fazendo cafuné. Ele adora acarinhar cabelos e se farta com as minhas ondas pretas compridas. Tem coisa melhor que carinho de criança, o mais espontâneo possível?
No rádio do carro, tocava o disco de criança que ele levou. A casa de brinquedos tem uma faixa cantada por Chico Buarque, de quem ele já reconhece a voz:
_ Você sabe quem está cantando, Antônio?
_ Chico Buarque. Mas por que ele tá cantando no CD para quianças?
No caminho do sítio, se divertia ao ver as marias-sem-vergonha, as que o titio Pedro ensinou que são chamadas assim porque dão em qualquer lugar. Achou muito engraçado quando em outro CD, ouviu o Chico falando da flor que acabara de conhecer:

Amor Barato

Eu queria ser
Um tipo de compositor
Capaz de cantar nosso amor
Modesto

Um tipo de amor
Que é de mendigar cafuné
Que é pobre e às vezes nem é
Honesto

Pechincha de amor
Mas que eu faço tanta questão
Que se tiver precisão
Eu furto

Vem cá, meu amor
Agüenta o teu cantador
Me esquenta porque o cobertor é curto

Mas levo esse amor
Com o zelo de quem leva o andor
Eu velo pelo meu amor
Que sonha

Que enfim, nosso amor
Também pode ter seu valor
Também é um tipo de flor
Que nem outro tipo de flor

Dum tipo que tem
Que não deve nada a ninguém
Que dá mais que maria-sem-vergonha

Eu queria ser
Um tipo de compositor
Capaz de cantar nosso amor
Barato

Um tipo de amor
Que é de esfarrapar e cerzir
Que é de comer e cuspir
No prato

Mas levo esse amor
Com o zelo de quem leva o andor
Eu velo pelo meu amor
Que sonha

Que enfim, nosso amor
Também pode ter seu valor
Também é um tipo de flor
Que nem outro tipo de flor

Dum tipo que tem
Que não deve nada a ninguém
Que dá mais que maria-sem-vergonha



Ao ler o Pentimentos, do Marcelo Moutinho, agora há pouco, me veio à mente coisas do meu passado suburbano. O texto abaixo ia como comentário lá, mas acabou virando post aqui.

Ainda bem que eu ainda tive tempo, na infância, de jogar queimado e bandeirinha, de ter medo de um tal homem da capa preta que atormentava os amiguinhos do meu irmão que cortavam caminho pelo mato para jogar futebol no campinho, de ter que entrar pra tomar banho assim que a cigarra começasse a cantar, de brincar de fazer bolos de areia enfeitados com marias-sem-vergonha (as flores que dão em qualquer lugar), de comer pitanga e de sentir cheiro de genipapo no quintal da vovó, de ter medo ao passar por despachos nos postes e de correr de cachorros na rua.
Em minhas andanças pela Zona Oeste, tenho encontrado esse tantinho de subúrbio da infância que ficou na minha memória. Experiência incrível.




Saí do Rio no domingo com o coração apertado. Tinha deixado para trás a dor de uma amiga muito amada, que perdeu o seu companheiro de uma vida. Um pai que ela insistia em chamar pelo nome, Joaquim, e do qual vivia a exaltar as qualidades. Entre elas, a de um bom cozinheiro. Prometeu, prometeu, mas não marcou o tal almoço no Engenho do Mato, com bobó de camarão, a especialidade dele. Na sexta-feira, me confessou: "tinha medo que vocês não gostassem".
Como nem tudo que ela fala se escreve, e eu já aprendi a ler sua verdade nas entrelinhas, tenho certeza de que o prato só poderia ser uma delícia. Joana é assim: demoramos muito a saber que seu pai foi um dos fundadores do PT em Niterói. Se o Lula não tivesse ganhado a eleição ano passado, o que a motivou a escrever um texto muito bonito, nós só ficaríamos sabendo na última sexta-feira que a sua casa foi a primeira sede improvisada do partido na cidade.
Não convivi com ele. Só tive o prazer de conhecê-lo há poucos meses, na festa de aniversário da pessoinha que mais alegrava sua existência no último ano: a neta Ana Luísa. Mas no convívio com a minha amiga, percebo as marcas que o pai deixou nela: a principal é a capacidade de se indignar com as injustiças do mundo e a generosidade. E assim é Joana: uma pessoa que não fala muito de amor, mas o pratica em cada ato. Os muitos amigos que tem (carente que é, sempre diz que tem poucos) sabem disso.
Ah, entre outras coisas, Joaquim fez da Joana uma menina muito mimada. E muito inteligente também. Ele andava muito contente com a cantora Maria Rita. Fã de Elis, dizia que sua filha ajudava-o a matar a saudade que tinha da mãe. Em homenagem a ele, posto uma música da mãe, que nos faz lembrar de outro petista que honrou a estrela do partido.

Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos
A lua, tal qual a dona de um bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel
E nuvens, lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas, que sufoco
Louco, o bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil pra noite do Brasil
Meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu num rabo de foguete
Chora a nossa pátria, mãe gentil
Choram Marias e Clarices no solo do Brasil
Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente, a esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha pode se machucar
Azar, a esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar...