Lameblogadas

quinta-feira, abril 05, 2007

Vai ver que é...


Já tinha ouvido "Mulato bamba" na voz de Mario Reis e lido, num daqueles discos da Revivendo, que trazem verbetes sobre as canções, uma tese que o mulato de Noel era machista, não afeminado. Achei engraçado quando li, na biografia escrita por Caola e João Máximo, que a música talvez tenha sido inspirada no famoso Madame Satã, o travesti que teria dado o soco de misericórdia em Geraldo Pereira. Lendo a letra, e ouvindo a interpretação de Reis, me parece bem claro que o mulato, que "não quer saber de fita/nem com mulher bonita", está mais para gay que para pegador. Por que ocultar isso no disco? No livro, eles falam também de uma possível homenagem a Ismael Silva. Ismael Silva?


Dizem que o malandro do Estácio, nascido em Niterói, também não queria saber de se apaixonar por mulher. Nem ele nem Assis Valente. Nem o próprio Mario Reis, por causa de sua solteirice e de seu jeito de cantar, que eu gosto muito. Alguns se arriscam a desconfiar também de Francisco Alves. O Rei da Voz, dizem, seria estéril, o que também foi fonte de muitas especulações. Mas o papo aqui não é levantar a vida sexual dos bambas do samba. A "Revista do Rádio", a Caras da época, já deve ter se ocupado bem disso.


Quero falar da genialidade de Noel. Acho que o poeta da Vila deve ter sido um dos primeiros compositores a tocar no tema da homossexualidade. Ele, que cantou as dançarinas de cabarés, os malandros, a gente da rua, com quem conviveu sem preconceitos, inovou também aí. Sua atração pelos desvalidos e marginais da sociedade é comovente - principalmente numa época em que seus pares não abriam mão de freqüentar festas e bailes da grande sociedade, enquanto Noel preferia as ruas, o sereno, o homem simples. Aqui me lembro também de "Filosofia" (Quanto a você da aristocracia/Que tem dinheiro, mas não compra alegria/Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente/Que cultiva hipocrisia). O samba deste post, acima das questões de interpretação, é lindo, principalmente na versão interpretada por Mario Reis.



Mulato bamba


Este mulato forte é do Salgueiro
Passear no tintureiro era o seu esporte
Já nasceu com sorte
E desde pirralho vive à custa do baralho
Nunca viu trabalho

E quando tira samba é novidade
Quer no morro ou na cidade, ele sempre foi o bamba
As morenas do lugar vivem a se lamentar
Por saber que ele não quer
Se apaixonar por mulher

O mulato é de fato
E sabe fazer frente a qualquer valente
Mas não quer saber de fita
Nem com mulher bonita

Sei que ele anda agora aborrecido
Porque vive perseguido sempre a toda hora
Ele vai-se embora
Para se livrar do feitiço e do azar
Das morenas de lá

Eu sei que o morro inteiro vai sentir
Quando o mulato partir dando adeus para o Salgueiro
As morenas vão chorar, vão pedir pra ele voltar
Ele então diz com desdém:
"Quem tudo quer, nada tem!''

*******

Verbete do disco "Jura", de Mario Reis, pelo selo Revivendo, sobre "Mulato bamba":

"Esse mulato malandro de Noel tinha por esporte passear de "tintureiro", ou seja, de camburão, o carro de presos, que era pintado em cores cores chamativas, tal qual as fachadas das tinturarias. Seria mesmo homossexual o mulato, porque não queria se apaixonar por mulher? Mas evitar se apaixonar não se traduz forçosamente por não gostar de mulher. Antes, é títpica conduta machista de não se prender a nem uma para poder ter todas. A paixão tem seus encargos, e, no dizer de hoje, mais conveniente é "ficar". As morenas por certo não iriam chorar com o adeus de um mulato refratário às mulheres...

Não posso dizer que antes de conhecer a obra de Noel Rosa, eu ignorava o samba. Mas afirmo que não tinha com ele, o samba, a relação que passei a ter depois de ouvir as primeiras letras do poeta da Vila. Foi ali, mais ou menos em 1998, que travei contato com um CD songbook que tinha os clássicos "Com que roupa", "Conversa de botequim", "Gago apaixonado" e outros cantados por famosos de nossa MPB. Na mesma época, achei na biblioteca da UFF um livrinho com letras de Noel e Ismael Silva. Precisava fazer um trabalho de história sobre música e escolhi, entre alguns BRocks dos anos 80, umas musiquinhas de Noel. Desde então, e o segundo achado nesse universo infinito do samba foi Cartola, passei a ter o estilo como meu preferido. Aos poucos, fui conhecendo uma coisa e outra, por vias bem diversas, até chegar ao Bip Bip, conhecer um certo cantor que começava carreira na Lapa, descobrir Aracy de Almeida e comprar alguns livros para estudar, por prazer, o meu gênero musical predileto.

A biografia do Noel repousava na minha estante há uns três anos, mais ou menos. Lembro quando comprei, por dica da Paulinha, que eu conheci porque ela "gostava de samba", por encomenda na Livraria Folha Seca. Era o penúltimo exemplar que o Rodrigo Ferrari tinha. E mandou me entregar. Já tinha tentado ler umas duas vezes. Mas livro é assim: pode ser muito bom, mas às vezes não gruda. O início me dispersava, com aquela história enorme sobre os antepassados de Noel. Mas, como o mundo gira e a lusitana roda, outro dia consegui engrenar a leitura. Que prazer quando encontramos aquela obra que vai marcar pelo resto da vida. Antes da metade do livro, já sofria de ansiedade: não queria terminar, muito menos ler o desfecho da história, de todos conhecida. Noel morreria a qualquer momento, e eu senti que teria o impacto, para mim, de uma morte atual.

Eu tenho esse apego aos personagens. Sonho várias vezes com mortos, como Glauber. E vivíssimos, como Chico. (É assim com os entrevistados também, mas o parêntese aqui seria longo, mas já é de madrugada e preciso dormir logo). Não demorou para me envolver com a história de Noel. Conhecer os personagens que povoaram sua Vila Isabel dos anos 20 e 30. Ouvir as falas, imaginar as roupas, sentir os cheiros, chorar, rir, sentir como se lá estivesse, observando ao lado, como se a filmar sua vida. Não sei de quem é o texto, já que o livro é assinado por dois autores, mas desconfio que seja do João Máximo. A intimidade com a história de Noel, me disseram, é coisa do Carlos Didier (Caola para os próximos). Que texto! Além de muitíssimo bem escrito, é perfeito na revisão. Encontrei dois erros bobos de digitação e um de português num tijolaço de 500 páginas, e grandes.

Que gênio foi Noel. Difícil de escolher agora entre ele e Cartola. É pena que, apesar de terem sido muito amigos, pouco compuseram juntos. Eu não teria dúvidas em apontar a parceria perfeita como a melhor tradução do que melhor foi feito na música brasileira em todos os tempos. Mas, se é para escolher, fico mesmo com Noel. No meio da leitura, parei muitas vezes para ouvir as desconhecidas, para mim, em acervos na internet (Instituto Moreira Salles) ou em discos que já tinha (Mario Reis, Francisco Alves, Aracy de Almeida).

Não penso em outra coisa, que não Noel, desde que terminei de ler o livro. Até engatei em outro, sobre a vida de Almirante, escrito pelo Sérgio Cabral, e que tinha me chegado ao conhecimento por meio de aulas do professor Dênis sobre a cultura brasileira. A idéia era simples: estudar o rádio lendo a vida de Almirante; a literatura conhecendo a história de Graciliano Ramos; a bossa nova por meio do Chega de Saudade, de Ruy Castro; o Cinema Novo, por Glauber Rocha. Mas é Noel que ocupa minhas horinhas musicais.

E é ele quem me faz visitar o blogger, para escrever este post. Pretendo vir aqui mais vezes, até o dia 4 de maio, data de aniversário de 70 anos da morte de Noel. Até lá, pretendo postar as músicas de que mais gosto, as que descobri pelo caminho, as que revisitei neste tempo e, por último, a minha preferida. É pena que não domino as técnicas de internet, para colocar aqui os links das gravações.

A da música abaixo é hilária. Tem um registro, por Noel e o Bando de Tangarás, que é sensacional. Hoje mesmo devo tê-la ouvido umas 17 vezes. Eu queria muito que ela entrasse no repertório de uma certa dupla de sambistas, que anda fazendo sucesso num musical, que retornará aos palcos no início de maio, ali pelas bandas da Praça Tiradentes.

Picilone (Noel Rosa)

Yvone (Yvone)
Yvone (Yvone)
Eu ando roxo
Pra te dizer um picilone

Já reparei outro dia
Que o teu nome, ó Yvone
Na nova ortografia
Já perdeu o picilone

É pra ganhar simpatia
Que todo mundo se abaixa
Pra te fazer cortesia
Com os olhos fora da caixa

Tem uma vida folgada
Não faz mais nada, a Yvone
Até já tem empregada
Para atender telefone

Cansei de andar só de tanga
Já perdi a paciência
Fui te encontrar na Cananga
Mas não me deste audiência