Lameblogadas

sábado, abril 21, 2007

Boemia...

Quando criança, eu detestava serestas. Por que? Achava tudo coisa de velho. Estava sempre com sono, circulando entre pessoas que não faziam parte de meu mundo, ouvindo uma música pesada, que eu não entendia, em vozes empoladas demais. Me lembro desses recitais na casa de um vizinho velho, casada com uma moça jovem (40 anos mais nova, para ser mais específica), mas que gostava de coisas velhas (hoje eu também gosto de coisas velhas!!!). Ele era festeiro, todo aniversário levava amigos com violões, contratava seresteiros e dá-lhe música de velho até de madrugada.

Morávamos numa casa de vila, e os vizinhos eram muito amigos, trocavam favores, saíam juntos, convidavam para festas, socorriam os doentes, as crianças que passavam mal. Esse casal, quando se mudou para a vila, causou um certo, diria, impacto. As vizinhas faladeiras se incomodaram com a diferença de idade, os shortinhos curtos da moça que já tinha filho do velho. Bobagem que durou pouco. Ela conquistou todas as senhoras, talvez por ser uma também, apesar da idade.

Esse vizinho era um dos mais queridos. Toda vez que fazia peixe, levava uma posta para mim, junto com o pirão. Como cozinhava bem! No Natal, deixava uma garrafa de vinho na porta dos outros. Era o mais jovem da rua, mesmo com a idade avançada. Tinha o espírito de um menino. Mas gostava de música de velho. Tanto que, toda vez que eu entrava em seu carro, ouvia seu cantor predileto: Nelson Gonçalves!

Até outro dia, antes de ler a biografia de Noel e procurar tudo que diz respeito ao meu compositor predileto, eu associava Nelson Gonçalves às serestas do meu vizinho e ao rádio de seu carro. Eu gostava do vizinho, mas detestava a música. Jovem tem necessidade de rejeitar o gosto dos mais velhos, não é? Aliás, jovem não. Adolescente chato! (nessa época da vida, eu ouvia metaleiros, era meio revoltada e totalmente alienada)

Pois bem, no site do Instituto Moreira Salles, que passei a freqüentar (na falta da caixa completa do Noelzinho) ultimamente, encontrei gravações de Nelson Gonçalves preciosas. Gostei e acabei comprando dois discos do "Metralha" (apelido que ganhou por ser inteiramente gago quando estava longe do microfone). Um deles é da Revivendo, "Nelson Gonçalves canta Noel Rosa e Herivelto Martins". Nele, desfila seu vozeirão por clássicos como "Quando o samba acabou" e "Só pode ser você". Mas é do disco com Raphael Rabello, que também comprei esta semana, que tiro a letra de um samba lindo de Noel para postar. "Pra esquecer" está também no maravilhoso CD "Cachaça dá samba", de uma certa dupla que estimo muito (Pedro Paulo Malta [lindo, lindo!!!] e Alfredo Del Penho).

Pra esquecer

Naquele tempo
Em que você era pobre
Eu vivia como um nobre
A gastar meu vil metal
E por minha vontade
Você foi para a cidade
Esquecer a solidão
E a miséria daquele barracão

Tudo passou tão depressa
Fiquei sem nada de meu
E esquecendo a promessa
Você me esqueceu
E partiu com o primeiro que apareceu
Não querendo ser pobre como eu

E hoje em dia
Quando por mim você passa
Bebo mais uma cachaça
Com meu último tostão
Pra esquecer a desgraça
Tiro mais uma fumaça
Do cigarro que filei
De um ex-amigo que outrora sustentei

domingo, abril 15, 2007









Da série "Eu gostava e não sabia de quem era"


Eu ouvi "Filosofia", pela primeira vez, numa roda de samba no Bip bip. Aliás, foi no dia em que conheci o bar-templo de Copacabana, onde também encontrei o meu amor uns dois ou três domingos depois ... A música de Noel foi a que mais me chamou a atenção naquela noite em que eu conhecia apenas um Zeca Pagodinho aqui e um Paulinho da Viola ali (mas não cantava, porque não ia dar a "pinta" de cantar só os sucessos!).

Saí com a música na cabeça, e pouco tempo depois compraria o CD do Chico ("Sinal fechado") onde nunca cansei de ouvi-la. Agora, quatro anos depois, lendo a biografia do homem, me lembrei daquela primeira roda e das tantas outras que fui desejando ouvi-la. Descobrindo essa e outras, que nunca liguei para saber de quem era, percebi o quanto Noel virou o meu compositor preferido - só empatando com aquele (adivinhem) que andaram comparando, quando surgiu, com o poeta da Vila.

Filosofia

O mundo me condena,
e ninguém tem pena
Falando sempre mal
do meu nome
Deixando de saber
se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome
Mas a filosofia hoje me auxilia
A viver indiferente assim
Nesta prontidão sem fim
Vou fingindo que sou rico
Pra ninguém zombar de mim
Não me incomodo
que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba,
muito embora vagabundo
Quanto a você da aristocracia
Que tem dinheiro,
mas não compra alegria
Há de viver eternamente
sendo escrava dessa gente
Que cultiva hipocrisia


****

Outra música do Noel que adoro é "Até amanhã". Mas essa tem sido um mistério para mim descobrir quando ouvi pela primeira vez, onde e com quem. Lendo no livro, eu cantei junto, com a melodia certa e tudo. Sabendo a história da canção - Noel escreveu na despedida de uma turnê pelo Sul para uma das moças que conheceu num cabaré por lá.

Aliás, a história desta excursão musical, arranjada por Francisco Alves, é uma das melhores do livro. Noel se recusava a seguir as regras do conjunto - basicamente, chegar na hora marcada para os ensaios e usar smoking nas apresentações. Pois Noel sequer aparecia para ensaiar e chegava, atrasado!, para os shows! Para o desespero de Chico Viola e Mario Reis, que compunha o grupo "Ases do samba", estava sempre mal-ajambrado na hora H. No primeiro dia, disse que até tinha alugado o "terno" que vestia: de um garçom!!

Essa rebeldia de Noel, que passava as madrugadas em cabarés e puteiros, arrastando o pianista Nonô (tio de Cauby Peixoto) com ele, levou Chico Alves a reter o pagamento pelos shows, para tentar impedir as noitadas. Mas nada nem ninguém prendia Noel Rosa.

Até amanhã
Até amanhã, se Deus quiser,
Se não chover eu volto pra te ver,
Oh, mulher!
De ti gosto mais que outra qualquer,
Não vou por gosto,
O destino é quem quer.
Adeus é para quem deixa a vida
É sempre na certa em que eu jogo
Três palavras vou gritar por despedida:
"Até amanhã! Até já! Até logo"

O mundo é um samba em que eu danço,
Sem nunca sair do meu trilho,
Vou cantando o teu nome sem descanso,
Pois do meu samba tu és o estribilho.