Lameblogadas

quarta-feira, dezembro 27, 2006


Aracy de Almeidá, é coisa minha!


A indústria cultural de massa sempre ditou as regras na minha casa. Meus ídolos eram fabricados pela televisão e pelo rádio. Cresci ouvindo Roberto Carlos, Gretchen, Gilliard e outras aberrações (tá, o Rei não é aberração, eu gosto de alguma coisa de sua obra) que passavam ou no Chacrinha, ou no especial de fim de ano da Globo, ou nos programas do Silvio Santos. Tive camiseta do Menudo, quando o grupo entrou na moda brasileira. Ouvi discos de pagode, quando o Zeca, o Fundo de Quintal, Almir Guineto e outros conseguiram um espaço nas rádios. Comecei a gostar de rock ouvindo a Transamérica e a Rádio Cidade (sou da geração BRock e isso ajudou também).

Na minha casa não tinha livros, exceto aqueles que os livreiros levavam na porta: histórias de Walt Disney, da Bíblia para crianças, o dicionário infantil da Vila Sésamo... Meus pais, até hoje, só consomem o que a TV diz que é bom. Uma vez, um menino que estava interessado em me namorar (mas que não deu certo) fez uma visita e, durante o papo, perguntou o que eu gostava de ler. Quis saber se eu já tinha lido os clássicos, de Machado a Jorge Amado, e eu ia, envergonhadamente, respondendo um não atrás do outro. Por que a vergonha? Porque eu sabia que gostava de ler, ora bolas.

Como morava numa cidade sem bibliotecas públicas, estudava num colégio (particular!!!) que também não me oferecia livros (pelo contrário, estudava por apostilas, que horror!) e não conhecia uma casa sequer com uma estante deles na sala, eu não tinha acesso à leitura que prestasse. Só lia bula de remédios, os livros citados acima mais de dez vezes, jornal e revista, tudo que me caísse às mãos com letras.

Quando arrumei o primeiro emprego, um dos meus chefes percebeu que eu escrevia muito bem para quem fazia Economia e perguntou se eu não queria levar pra casa uns livros dos quais estava se desfazendo. Na mesma época, já na faculdade, eu passei a ler mais, por pedidos dos professores. Aliás, nessa época comecei a me inquietar: se eu leio tão bem e gosto tanto de escrever, o que vou fazer com esses números todos? Seguir a carreira acadêmica e escrever artigos tão bons quanto os da professora de métodos de pesquisa fazia. Esse foi meu primeiro plano profissional.

Confesso: o tal chefe me deu vários livros de Paulo Coelho (ele colocava insenso em seu escritório, um horror!). Li todos. Era muito pouco. O primeiro namorado que lia, mais ou menos nessa mesma época, me emprestou a biografia do Vinícius e a do Chatô. Pronto. Aí um mundo novo se abriu. Me apaixonei pelas histórias de vida que contavam também a dos países, de uma época. Daí para o primeiro Saramago (o namorado já era outro) foi um pulo. Os clássicos, a literatura brasileira, as crônicas (ao rés-do-chão, mas um de meus gêneros prediletos), as cartas, os contos, a poesia, os discos de Chico Buarque!

Os momentos de deslumbramento com a beleza da arte são inesquecíveis. Já na faculdade de Comunicação, onde tudo ficou claro, eles foram muitos. Como nos dias em que descobríamos juntos um novo autor, os filmes só disponíveis nas cinematecas e coleções de fãs. Um dia, o professor de Oficina de Textos leu uma crônica em sala do Caio Fernando Abreu, do livro "Pequenas epifanias", a leitura se transformando no próprio nome do texto... Desde então, lá se vão sete anos, procurava o livro, esgotado, em todos os sebos de todas as cidades que visitei. Esse e outro, a Poesia Completa e Prosa de Murilo Mendes, que não comprara na época do lançamento por falta de grana mesmo.

Pois, neste Natal, ganhei os dois livros de uma vez. O primeiro, do amigo-oculto. O segundo, do namorado, que é o melhor de todos, o melhor deste meu mundo e de outros que existirem por aí. O Pedro, aliás, me deu um segundo presente, que é derivado de um anterior. Há não sei quanto tempo, ele me presenteara com um livro de crônicas do Antônio Maria (personagem de muitas aulas do meu professor Dênis) que trazia um texto sobre Aracy de Almeida.

Araca, ou a jurada do Silvio Santos, como eu a conhecia até então. Quantas novas janelas se abriram a partir das palavras carinhosas de Maria sobre a Dama do Encantado. Não me lembro bem quando ouvi, pela primeira vez, sua voz suave da juventude, entoando um repertório dos melhores da época de ouro da música brasileira _ pré-indústria cultural de massa que iria guiar as preferências na minha casa de vila do subúrbio desencantado. Deve ter sido mais ou menos na época em que conheci Mario Reis também, e passei a admirar o estilo de ambos, do samba quase falado, no qual se inspiraria outro artista apresentado pelo meu cantor-namorado, João Gilberto.

O presente de agora, que nasceu de uma curiosidade descontrolada (eu sou assim, se gosto muito de um artista, preciso conhecer tudo sobre ele. Foi assim com Glauber, Clara Nunes, Chico, Nelson Rodrigues, Truffaut, entre outros), é simplesmente TODA A OBRA DA CANTORA. E aqui vai um crédito para o querido pesquisador Paulo Cesar de Andrade. No Rio de Janeiro, eu tinha duas referências de pessoas que possuíam tal tesouro: ele e Cristina Buarque - mas eu não tinha coragem nem intimidade para pedir emprestado. Pois Paulo Cesar emprestou a coleção para o meu amor copiar e me presentear.

O que é toda a obra de Aracy? São todas as gravações de sua brilhante carreira, ainda não contei quantas músicas, em discos de 78 rotações e, posteriormente, LPs, que "O pesquisador", como o chamamos, compilou em CDs. Tudo devidamente catalogado, com ano de gravação, editora e número de série. Um tesouro que, com a generosidade dos dois, agora terei em casa. Nos próximos dias, estarei absorvida, então, pelos meus presentes, que talvez tenham sido os melhores de toda uma vida.

(Peraí, o que dizer da caixa da Clara Nunes e a do Caymmi que o Pedro me deu em outros anos? Bem, ele consegue se superar sempre, e eu devo ter me esquecido de tantos outros...)

Talvez seja hora de desengavetar projetos e começar a ler as biografias do Noel e do Mario Reis que repousam na parte da minha estante reservada à música.