Lameblogadas

quarta-feira, abril 11, 2007

"Ouça-me bem, amor/Preste atenção, o mundo é um moinho/Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos/Vai reduzir as ilusões a pó/Preste atenção, querida/De cada amor tu herdarás só o cinismo/Quando notares estás à beira do abismo/Abismo que cavastes com teus pés"

Pouca coisa me impressionou mais na vida que estes versos de Cartola, minha segunda maior descoberta no mundo do samba. O Pedro diz que ainda vou "descobrir" Nelson Cavaquinho, que ele gosta mais do que do autor de "O mundo é um moinho". Pode ser, porque essas coisas de arte acontecem assim assim, em tempos determinados por uma ordem muito particular. Gosto de Nelson Cavaquinho, também, mas meu coração bate mesmo é por Cartola.

Na sexta passada, assisti ao filme do compositor que está em cartaz na cidade e vi que a minha música preferida também era a de seu pai. Cartola foi um menino travesso, não queria nada com a escola e tudo com o samba e o carnaval. Na cena, quase dá para ler o pensamento pelo olhar orgulhoso do pai: "não quis estudar, mas é um gênio esse garoto."

O filme é mais um exercício de linguagem cinematográfica de Lírio Ferreira (qual o nome do outro diretor mesmo?). Ele contextualiza a história (de Cartola, do Rio, do país, da música) com deliciosas cenas de filmes da época da chanchada, do Cinema Novo e de Júlio Bressane. Exibe imagens preciosas do compositor, como a entrevista para o programa ensaio, entrevistas para TV, participação em programas, etc. Entrevistas de parceiros, estudiosos (tá, Nelson Motta e Hermano Vianna não fariam falta se não aparecessem) e amigos. Mostra intérpretes de Cartola, como Elizeth Cardoso e Elza Soares, e abusa das músicas, as melhores, do poeta da verde-e-rosa.

Lírio é um pernambucano que ousou contar a história de um mito do samba e da carioquice. Está sendo criticado por causa disso. Para mim, o resultado final foi muito bom. Cenas como a da sombra do bonde da Lapa e a bela imagem-metáfora do varal de óculos à la Cartola valem pela criatividade. Em outro momento de inspiração, ele mostra a escuridão, como se a exibição tivesse sido interrompida, para contar o sumiço de uma fase da vida de Cartola.

Se há um defeito em "Cartola", é a falta de maiores detalhes da história de vida do compositor, contada em recortes meio confusos para quem não é do riscado. A essa crítica, ele responde assim: "Que procurem ler nos livros". Nas mãos de Ferreira, Cartola é um ídolo pop, que ultrapassou as fronteiras dos morros e não é mais propriedade dos sambistas e intelectuais de raiz. Abusado! :-)

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Mas a idéia do Lameblogadas não era falar de Noel Rosa até o dia 4 de maio? Sim, e o gancho é justamente o filme de Cartola, que não menciona a amizade entre os poetas da Vila e da verde-e-rosa. Falo eu, então. Noel freqüentou muito o morro de Mangueira. Dormiu muitas vezes no barraco de Cartola, ao voltar da boemia com o amigo, os dois sob os cuidados de Deolinda, a primeira mulher do autor de "Divina dama" (a quem ele homenageou com a letra "Tive sim", na verdade um samba para Dona Zica parar de implicar com o passado do marido*). Dizem que Deolinda dava até banho em Noel, para curá-lo de porres homéricos. Ela vestia o amigo do marido, dava comida, tratava dele como a um filho, num estilo que a fez largar do primeiro marido para cuidar do enfermo Cartola.

* Tive, sim

Tive, sim
Outro grande amor antes do teu
Tive, sim
O que ela sonhava
eram os meus sonhos e assim
Íamos vivendo em paz
Nosso lar, em nosso lar
sempre houve alegria
Eu vivia tão contente
Como contente ao teu lado estou
Tive, sim
Mas comparar com o teu amor
seria o fim
Eu vou calar
Pois não pretendo amor te magoar

Esta amizade entre Cartola e Noel (que também virou filme, em breve nos cinemas), pena, resultou em apenas dois sambas conhecidos: "Qual foi o mal que te fiz" e "Não faz, amor". Este segundo foi comprado por Francisco Alves, de um Cartola doente, ardendo em febre. O Rei da Voz procurou Noel, pediu a ele que fizesse as segundas e gravou. Nem no disco nem na partitura aparece o nome de Noel, que abriu mão dos créditos dando a música de presente ao amigo. Agora, eu sou fã de carteirinha de dona Deolinda! Uma pena que ela e Noel tenham saído da vida de Cartola tão cedo... fizeram muita falta! Imaginem outros sambas dos dois? Com Deolinda, Cartola não teria sumido... Enfim, vamos ao samba, que pode ser ouvido no site do Instituto Moreira Salles, na gravação de Francisco Alves:


** Não faz, amor
Cartola e Noel Rosa

Não faz, amor, deixa-me dormir
Oh, minha flor, tenha dó de mim
Sonhei, acordei assustado
Receoso que tivesses me enganado
(Eu não durmo sossegado)

Só tens ambição e vaidade
Não pensas na felicidade
E eu não descanso um momento
Por pensar que o teu amor é só fingimento
Mas eu vou entrar com meu jogo
E vou pôr à prova de fogo
A tua sincera amizade
Para ver se tu falaste verdade

Amar sem jurar é bem raro
O verbo cumprir custa caro
Amor é bem fácil de achar
O que acho mais difícil é saber amar
O mundo tem suas surpresas
Mas nós temos nossas defesas
Por isso eu estou prevenido
Pra saber se sou ou não traído